1.9.06

Historinha adolescente


Um dia, minha vizinha e amiga de infância sonhou com um número de telefone desconhecido: o prefixo era 361, o do nosso bairro. Sonhou que era o número de um rapaz lindo e charmoso. Mas logo ela, a criatura mais atirada que eu já conheci, não teve coragem de telefonar pra checar. Do alto dos meus 15 anos, tinindo de atrevimento e falta de juízo, liguei eu.
“Boa tarde, moça”, disse à mulher que atendeu. “É que o rapaz que mora aí me deu esse número, mas eu esqueci o nome dele”. “Ah, Marconi”, falou ela, sem a menor desconfiança. “Um momentinho que já vou chamar”. E foi. E ele atendeu. E eu, no maior desplante, depois de dez minutos de conversa – “oi, Marconi, tudo bem?” – contei a ele a história maluca inteira. Marconi tinha 17 anos e não sei se acreditou, mas claro que ficou curioso. Depois de mais uns dois telefonemas (minha amiga sempre sem querer falar com ele, morta de vergonha), marcamos de nos encontrarmos.Não lembro onde combinamos – se na Jan-Ju, a sorveteria do bairro onde tudo acontecia; se na praia; se no shopping; se no próprio prédio. Eu fui, como intérprete do casal. Minha amiga cheia de dedos, roxa, como se fosse morrer.
Marconi tinha espinhas, era gordinho, cara de bom rapaz, e mais eu não lembro agora. Não parecia com o rapaz do sonho e ela se desinteressou dele - que não chegou a se interessar por ela, mas botou logo o olho em mim.Este poderia ser o início de uma linda história de amor, mas Marconi, tadinho, não sabia por onde começar. Passou dias e dias me ensinando a jogar vinte-e-um, relancinho, todos os jogos do baralho. Nunca arriscou nem a pegar na minha mão. E eu, malvada que sou, aficcionada que sou por homens severgonhos (dá uma tese, longas histórias), aos poucos comecei a fugir do rapaz, de um jeito tão natural que até hoje não sei dizer como Marconi sumiu.Fico aqui pensando, se ao invés de telefonar, a gente não devia ter jogado no bicho...

Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 27 de maio de 2006.

Mignon


Às vezes daria qualquer coisa pra ter 1,60m, 40kg, calçar e vestir 36, e ser uma mocinha delicada em vez dessa coisa estrompa que vos fala, e que tem por principal característica o fato de ser grande e mesmo assim não caber em si. Eu ia ser loura, de olhos azuis, do tipo ninfa-transparente-a-ponto-de-quebrar, e me chamar Larissa. Larissa é meu alter-ego, meu desejo secreto de ser frágil e feminina, no que o feminino tem de mais estereotipado.
Eu sei, existem diversos tipos de beleza e de mulheres no mundo. Mas às vezes a gente se chateia de ser superlativa: eu sou grandONA, bonitONA, tenho peitÃO, pezÃO, mãozONA, cada lapa de osso que vou te contar, e nem que eu emagreça tudo que tenho que emagrecer no dia que Deus quiser, não vou jamais ser pequenina. Esbarro nas coisas, derrubo tudo, porque confesso que não sei calcular bem o espaço que ocupo no mundo. Ô, mulher desajeitada! Quando era pequena queria fazer balé, mas hoje acho que seria uma avestruz no meio dos pintinhos...
Ninguém me dá colo; todos me acham ‘forte’. E a gente vai tentando ser ‘forte’ e dar colo aos outros, porque é o jeito e é o que esperam de nós. Uma vez, eu tive um namorado muito maior do que eu, e que me fazia me sentir menina junto dele. Numa das primeiras vezes que me viu, pra medir força, me levantou no ar por quase um minuto: foi a maneira que achou de me desafiar e eu tive muita raiva, mas por outro lado, gostei de me sentir indefesa, uma vez na vida...
Tá, ser grande tem suas vantagens. Até hoje nenhum trombadinha de rua se meteu comigo e eu alcanço os produtos da última prateleira do supermercado. Mas imprenso meu joelho no banco de trás do carro, não acho roupa e sapato em qualquer lugar, e me irrito por não conseguir passar despercebida. Qualquer referência – mesmo que na intenção de elogio - a qualquer parte ‘superlativa’ de mim pode facilmente me magoar, por ser verdade e não-modificável. E eu me sinto mal por ser tão boba e sensível.
Graças a Deus que não é todo dia em que me sinto assim. Às vezes, agradeço cada milímetro de mim. Eu duvido que minha alma funcionasse igual, dentro da carcaça de Larissa.
Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 29 de abril de 2006.

Em memória de um elefante

“Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio. E o encho de algodão, de paina, de doçura” – Carlos Drummond de Andrade Eu já vi tubarões amestrados, formigas gigantes, caranguejos dançarinos, jacarés no guarda-roupa, lobos que se disfarçavam de chinelo. Eu já criei sapos numa gamela de barro, construí uma cidade no quintal, cavei um buraco de três metros de fundura e lá enterrei todos os meus míseros brincos e anéis. Minha infância foi uma festa preciosa de sofrimento e magia, durante a qual fui podada em muitas coisas, mas nunca na imaginação. A presença do meu pai quando criança também era uma coisa complicada, Sama, e minha mãe achava que Papai Noel era uma invenção pequeno burguesa, mas ao ler a tua história senti pena dos adultos que matam a infância em si e nos outros, e que não sabem rir, e que não sabem enxergar com os olhos de ver. Será que uma dose maciça de Chagall, Amélie Poulain e García Marquez ajudam? Ou será que eles estão destinados à pobreza de ver apenas com os olhos da cara? Que bom que você ainda lembra do elefante, e que ele era azul, e se fez memória e história. Que bom que mesmo te faltando o pedaço tirado pelo beliscão, você é assim tão grande. Um beijo.
Postado originalmente no Sítio de Maricota, em 11 de janeiro de 2006.

Delicadeza


Passei pela sala com a juba em crise, esse meu cabelo maluco que eu só desembaraço mal e mal quando lavo, e que freqüentemente fica parecendo um vespeiro. “Vem cá”, ele falou pra mim. E me fez sentar em frente dele, feito uma menininha. E pegou um troço pequenino, imprestável, e passou uns quinze minutos dedicado à tarefa inglória de desembaraçar ela, a moita, com aquela escovinha mísera. Quase que eu disse “não”, diante do presente inesperado que me fez sentir como se tivesse cinco anos. Depois, me entreguei à experiência inesquecível. Foi como uma bênção, carinho escorrendo em cada madeixa e fluindo através de duas mãos grandes, estabanadas e levíssimas - como se ele beijasse cada pedacinho de mim.

Publicada originalmente no Sítio de Maricota, em 09 de janeiro de 2006.

Mais um vexame

Vim pra Guamirim, distrito de Irati, município a 2h30 de distância de Curitiba, participar da formatura do Cedejor. O vôo saía às 7h do Galeão, acordei antes das seis, cansada por duas noites mal-dormidas seguidas, e segui pro aeroporto. Lá, descobri que deu o tilt no avião; depois de muita espera e nenhuma informação, o vôo acabou saindo - às 10h, horário em que supostamente eu estaria chegando em Curitiba. Lá, no aeroporto, seu Osmar me esperava. Seu Osmar é motorista da Localiza e foi o premiado pra me levar a Irati, esperar até nove da noite, e me levar de volta a Curitiba, de onde vou pro Rio, amanhã. É um senhor baixinho, de boa cara, de jeito formal e ar educado como a maioria das pessoas do Sul que tenho conhecido nos últimos meses. Conversei com ele uns dez minutos, e prontamente caí no sono, deixando de apreciar a paisagem tão bonita das estradas paranaenses. Sabem aquele tipo de sono esquisito, em que você está quase acordada e mistura as coisas? De repente, eu estava indo para Guamirim, distrito de Irati, município a 2h30 de distância de Curitiba, participar da formatura do Cedejor. Seu Osmar estava dirigindo o carro, um homem de idade ia sentado na frente, atrás vinha outro cara e, junto de mim, uma adolescente com os cabelos mais vermelhos que eu já vi. E eles conversavam, e faziam comentários sobre mim (seriam o Ego, o Id e o Superego? Três entidades espirituais? Sei lá da minha vida). A menina era a pior de todos, ria muito do fato de eu estar dormindo enquanto o mundo à minha volta fervilhava. Eu olhava pra mim "de fora", vendo a cena toda. Teve uma hora que os comentários foram piores e eu - no sonho? -, mesmo de olhos fechados e balbuciando, xinguei a danada de tudo que foi nome. Quem me conhece sabe - eu rio, falo, faço careta quando estou dormindo. Quando acordei, não sei não, mas achei seu Osmar com a cara meio esquisita.
Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 09 de dezembro de 2005