19.11.06

No ônibus

Costumo ser mais ou menos calma, e respeitar todo tipo de crença. Mas tenho horror de crente pentecostal, justamente porque eles não respeitam as crenças dos outros. Isso posto, corta pra cena em questão: num domingo à tarde, lá estava eu indo como de praxe pra Olinda, quando subiu a mulher no ônibus. Devia ter seus sessenta anos, cabelo preso num coque, Bíblia meio ensebada debaixo do braço, provavelmente indo pro culto. Dois minutos depois começou a cantar, numa voz fininha que parecia uma muriçoca, os hinos lá da igreja dela. Um, dois, dez. Até que uma hora eu não aguentei e comecei a cantar alto, lá do fundo do ônibus: "elo ya, elo ya ô, elo ya, obá xirê, obá xirê, obá, elo ya ô"...Cantei pra Xangô, pra Oxum, pra Iansã, pra tudo que é santo cuja saudação aprendi no afoxé, que eu não sou nada na vida, sou uma casca agnóstica que não consegue acreditar em nada, mas odeia os sepulcros caiados, os fariseus que se acham melhores que os outros.
A dona arregalou os olhos e tentou cantar mais alto, mas Deus quis que aquele ônibus estivesse justamente indo pra Olinda. Logo um rastafari começou a batucar mais adiante, uma doidinha inventou de rir e fazer coro, e de repente o ônibus parecia um terreiro festivo de candomblé. Ela desceu meio murcha, dois pontos depois. E eu juro que não me arrependi até hoje.

Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 31 de julho de 2006. 

Daiane

Eram cerca de dez crianças, moradoras da Ilha das Cobras, favela pertinho daqui. Quando vim morar em Casa Forte, em 1997, encontrava com eles sempre que ia a pé, fazer compras no supermercado. Me pediam dinheiro, 'uma pratinha só'. Nunca dava. Mas sorria e conversava sempre e, uma vez, para grande irritação do segurança do mercado, levei todos para a loja e comprei um pacote de biscoito para cada um. Pouco, mas o suficiente para morrer de susto, vergonha e alegria quando, uma vez em que me encontraram por acaso no ônibus, saíram gritando 'tiiiia', assobiando e batendo palmas e me abraçando, para horror e gáudio dos outros passageiros.
Deles todos, guardo a lembrança de Daiane, mestiça bonita de pele escura e cabelos claros, irmã ou prima da maioria dos mendiguinhos da região do Shopping Plaza. Tinha uns cinco ou seis anos nessa época, e um sorriso tímido devastador.
Uma vez, encontrei-a mancando. "Que foi isso, menina?" "Ah, tia, eu ia passando e o cachorro me mordeu, tive até febre", falou, mostrando o pé machucado. Me preocupei. "Você tem que ir no médico, menina, tem que tomar remédio, cadê sua mãe?", disse eu, enquanto ela sorria, conformada, sabendo que doença de pobre tem que se virar sozinha. Tentou me tranquilizar. "Nem doeu muito, tia. E eu tive sorte, sabe por que? Essa chinela é da minha mãe e é novinha, ainda bem que ele mordeu meu pé".
Fui embora quase chorando, pensando nessa menininha cujo pé valia menos que uma sandália havaiana: se danificasse o calçado, certamente ela apanharia da mãe, que só aparecia na rua de vez em quando, para verificar o apurado da filharada.
Pois ontem eu acho que vi Daiane. Ela sumiu desde esse tempo - também eu viajei, fui e voltei para esta casa onde vivo mais de uma vez. Nesses anos todos, acho que vi-a uma vez só de relance, os peitinhos de moça começando a despontar.
A Daiane que vi ontem tinha nos braços uma criancinha de olhos grandes, que nem ela. Ela não me conheceu, ou não me viu: estava ocupada, alimentando o bebê. E eu não tive coragem de chegar junto para ter certeza, porque uma parte irracional de mim deseja muito que Daiane não faça parte desses índices horrendos que relatam nossa miséria e que matam o melhor da nossa alma, a cada dia.

Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 30 de junho de 2006.

Acende uma fogueira no meu coração

Minha tia Miriam odeia esta época, diz que “forró nunca prestou pra nada” e fica “à beira de uma crise de ‘neuvos’ de só ouvir essa bosta de música de sanfona xoteira, de ver gente com os dentes pretinhos fingindo banguelice, de ver chitão e chapéu de palha”. “Eu quero rock!”, me berrou ontem ao telefone.
Mas eu acho o São João um tempo mágico, que só quem é nordestino sabe o que significa.
Começa envolvendo os sentidos: cheiro de milho assado, pamonha e pé-de-moleque, bandeirinhas sendo penduradas aqui e acolá, música tocando em todo canto e eu com vontade de dançar em pleno supermercado.
Desde pequenininha, quando meu irmão de três anos enfiou a faca de serrar pão na minha canela porque não deixaram ele participar da debulha do milho da canjica, a idéia de que é uma festa coletiva se enraizou no meu coração.
Vejo símbolos. É a festa da colheita, da abundância, da fartura, que existe em todas as culturas desde tempos imemoriais. Junta a mãe Deméter com o pai Xangô, kawó kabiyèsílé!, o poder transformador do fogo, o calor, a regeneração, a fecundidade, a vida.
As comidas elaboradas são verdadeiras oferendas, se não aos deuses, mas à família a quem amamos.
As crianças enlouquecem com os fogos de artifício, e embora tenha medo e conheça os dados sobre os altos índices de acidentes, devo me confessar uma fascinada pela pirotecnia.
O friozinho convida a ficar junto, a dançar agarradinho esse forró nos iguala, nos funde. Já tive namoro começado por culpa desse encontro, da simbiose que a dança estabelece, e por essas e outras minha amiga Eva diz que é como transar em pé e recusa convites para forrozar. E quando rola uma quadrilha improvisada, volto a ser criança.
E a alegria é tanto maior quando experimento o indiferenciado, quando pego na mão de um desconhecido numa dança de roda, e me sinto fazendo parte de um todo muito maior do que eu possa imaginar.

Publicado originalmente no Sítio de Maricota, em 26 de junho de 2006.