Hoje seria o dia em que minha mãe completaria 60 anos, e a saudade parece que aperta mais.
Não é porque ela era minha mãe – todo mundo costuma gostar e sentir falta da sua, se ela não está mais consigo – mas eu tenho certeza de que o mundo se tornou um lugar mais pobre, com a ausência dela.
Este mundo, pelo menos. Porque se existir um céu, se existir algo melhor e mais bonito do que isso aqui onde a gente vive, ela com certeza se tornou uma peça querida, importante e fundamental por lá. Mas mamãe não me abandona, de jeito nenhum: vive nas minhas células, na minha lembrança, nos meus sonhos, no meu coração.
Neste 23 de setembro, quero celebrar minha mãe, de muitas formas. Ir a um restaurante comer rabada, ou comida árabe, ou pudim de clara. Ou berinjela no azeite, que ela amava e eu aprendi a gostar tanto quanto, depois de adulta. Ouvir Paulinho da Viola, ou Nara Leão. Usar lavanda da Yardley. Cuidar de algum velhinho, pegar algum bebê no colo. Fazer bolo de banana. Ler Agatha Christie. Comprar vários tecidos coloridos pra fazer uma única roupa. Viajar. Ir a uma peça muito boa de teatro. Sair na rua sem rumo, só pelo prazer de ver o mundo. Conversar muito com algum desconhecido no metrô. Fazer as coisas bobas e cotidianas em que ela costumava entregar sua alma, e nas quais deixou sua marca, para sempre.
Tenho muitas histórias para contar de minha mãe, e isso me consola. Mas hoje, que é um dia especial, quero lembrar de uma cena cinematográfica que vivi junto com ela, que sempre soube enxergar o essencial das coisas e das pessoas. A descrição segue abaixo, junto com um beijo de aniversário e uma rosa branca.
Um dia fui almoçar com mamãe, no trabalho dela. Eu adorava fazer isso, porque além de vê-la, filava a bóia: ela pagava a conta do restaurante, que tinha uma das comidas mais gostosas de Recife. Fomos, comemos, conversamos. E eu fiz, como a maioria dos meus amigos já devem ter visto, uma rosinha branca de papel com os guardanapos em cima da mesa. Nessa época, ainda era uma novidade...
Mamãe achou bonito e saiu do restaurante, de flor na mão, caminhando comigo pela Conde da Boa Vista, que é uma das avenidas mais movimentadas de lá – o equivalente da Rio Branco daqui do Rio, talvez?
De longe, eu vi um grupo de meninas de seus dez, doze anos se aproximando. Sujas, mendigas, maltrapilhas mesmo. Mais de uma com um tubo de cola na mão. Liguei meu radar: atenção, perigo. Mamãe sempre teve a teoria de que as meninas cheira-cola são mais perigosas que os meninos – não sei se leu algo em algum lugar, ou se era pelo fato óbvio de que nós, mulheres, somos mais imprevisíveis e afoitas.
Aí, começou a cena de cinema. As meninas abriram um riso largo (não sei se alguma conhecia minha mãe, notoriamente visada por ter a mania de distribuir lápis de cor e brinquedos entre os meninos de rua, que conhecia pelo nome), e uma veio de longe cantarolando Roberto Carlos: “receba as flores que lhe dou, em cada flor um beijo meu...” Mamãe riu de volta, fez um gesto galante e entregou a rosa. Pra mim, já era suficiente pra lembrar a cena pelo resto da vida, mas ela não terminou por aí. Como se tivessem ensaiado, as sete ou oito meninas cercaram minha mãe e encheram ela de abraços e beijos. Eu fiquei de boca aberta, encantada com a explosão de amor.
Foi quando duas colegas de trabalho de mamãe, que também voltavam do restaurante, passaram se cutucando e apontando: “nossa, olha lá que horror, Nagicina no meio das cheira-cola”. Mal terminou de falar, a primeira linguaruda levou um murro na boca. Correram trêmulas e chorosas para o banco, lamentando a violência deste mundo perdido.
Nesse dia, minha mãe me ensinou sem palavras que a gente, normalmente, recebe o que dá.
*Postado originalmente no Sítio de Maricota, em 23 de setembro de 2005.
3 comentários:
Mês de setembro pra mim é mês de Cininha e de primavera. Nesta ordem. Tenho muitas, muitas lembranças dessa sujeita brutalmente singular. O que me consola (e sinceramente me faz acreditar que vale a pena afirmar a vida) é saber que Mariana e Gabriel tão aí firmes e fortes. E com filhos.
Mariana, coincidência que eu tenha vindo visitar o seu blog pela primeira vez no dia 23 de setembro e lido a história de Cininha com a sua rosa de guardanapos e as meninas de rua. Coincidência e privilégio. Sua mãe é meio figura literária para mim, de tantas histórias ouvi sobre ela, contadas pelo Pedro. Cinco anos depois da sua postagem o texto continua vivo, igual à memória de Cininha.
Um beijo
Paula (Fiuza)
Que bom que ela vive até em quem não a conheceu...
Beijos pros dois
Postar um comentário